Mortes relacionadas a bebidas alcoólicas dispararam durante a pandemia

03/04/2022

Por Revista Formosa

O primeiro ano da pandemia de covid-19 foi marcado por um salto no número de mortes relacionadas ao abuso de álcool nos Estados Unidos.

Segundo pesquisadores do Instituto Nacional sobre Abuso de Álcool e Alcoolismo (NIAAA, na sigla em inglês), divisão dos Institutos Nacionais de Saúde, agência de pesquisa biomédica do governo americano, o número de mortes envolvendo álcool passou de 78.927 em 2019 para 99.017 em 2020, um aumento de 25,5%. Isso inclui desde casos de intoxicação pelo consumo excessivo de álcool até casos de falência hepática relacionada à bebida.

Quando considerada a taxa por 100 mil pessoas, o aumento foi 25,9%, passando de 27,3 mortes em 2019 para 34,4 em 2020. Nos 20 anos anteriores, de 1999 até 2019, a média de crescimento foi de 2,5% por ano.

Os dados foram apresentados em um estudo publicado em 18 de março no Journal of the American Medical Association (JAMA), revista científica da Associação Médica Americana, e refletem um fenômeno também registrado em outros países, como o Brasil.

De acordo com um levantamento divulgado no ano passado pela organização independente de saúde pública Vital Strategies, com base em dados Ministério da Saúde brasileiro, de 2019 para 2020 houve aumento de 18,4% em mortes no Brasil relacionadas a "transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool".

O levantamento no Brasil usou critérios diferentes do estudo americano, mas o salto no primeiro ano da pandemia também ficou muito acima da média da década anterior, quando foram registrados aumentos pequenos ou até queda em alguns anos.

Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, o aumento desses números pode estar relacionado ao estresse gerado pela pandemia, na qual muitas pessoas enfrentaram isolamento e mudanças abruptas na rotina, no trabalho e nos hábitos de consumo, além de adiarem tratamentos de saúde física e mental.

"Maior consumo de álcool para enfrentar fatores de estresse relacionados à pandemia, mudanças de políticas relacionadas ao álcool e interrupções no acesso a tratamento são possíveis fatores que contribuíram (para o aumento)", dizem os pesquisadores americanos.

Aumento no consumo

O principal autor do estudo americano, o neurocientista Aaron White, que é conselheiro científico sênior do diretor do NIAAA, diz à BBC News Brasil que não esperava ver um salto tão grande nos óbitos.

"Estávamos preocupados com a possibilidade de um aumento grande nas mortes, porque sabemos que as pessoas tendem a beber mais quando estão sob estresse, e a pandemia é uma enorme fonte de estresse", observa White.

"Mas não antecipávamos que fosse ser uma mudança tão grande. Até então, nos últimos 20 anos, o maior aumento anual havia sido de cerca de 5%", ressalta.

Os pesquisadores decidiram medir o aumento no número de mortes por álcool depois que estudos indicaram um salto no consumo de bebidas alcóolicas para lidar com o estresse durante a pandemia.

Outros estudos mostravam que, no período, houve crescimento no número de visitas a hospitais por conta do consumo de álcool e também nos transplantes por causa de doenças do fígado relacionadas ao álcool.

Homens e mulheres de todas as idades

Para chegar aos resultados, White e seus colegas analisaram certidões de óbito de pessoas com 16 anos ou mais em que o álcool foi listado como causa principal ou fator que contribuiu para a morte.

Estão incluídas mortes resultantes de doenças do fígado associadas ao álcool, de transtornos mentais e de comportamento relacionados ao consumo de álcool e de overdose de drogas envolvendo também álcool, entre outras causas.

O estudo revelou aumento nos óbitos por álcool de homens e mulheres de todas as idades, com os maiores saltos nas faixas etárias de 35 a 44 anos (39,7%) e de 25 a 34 anos (37%).

Os pesquisadores ressaltam que, em 2020, um total de 2.042 certidões de óbito listaram tanto álcool como covid-19 entre as causas de morte, sendo que em 1.475 delas a causa principal era covid-19.

"Apenas uma pequena proporção do aumento de mortes relacionadas ao álcool envolve covid-19 diretamente", afirmam os cientistas.

A taxa geral de óbitos por 100 mil pessoas, quando levadas em conta todas as causas de morte, aumentou 16,6% de 2019 para 2020.

Crescimento sem precedentes

Os impactos da pandemia de covid-19 nos Estados Unidos são vistos não apenas nos óbitos diretamente causados pela doença, que já deixou quase 1 milhão de mortos no país, mas também podem estar ligados a aumentos históricos em diversos outros tipos de mortes.

O país enfrenta um crescimento sem precedentes na taxa de homicídios, com salto de 29% de 2019 a 2020 segundo o FBI (a polícia federal americana), maior aumento de um ano para o outro desde que dados nacionais começaram a ser coletados, em 1960.

Apesar de ressaltarem que o aumento da violência é resultado de uma combinação de diversos fatores e que as causas ainda não estão claras, alguns analistas citam o estresse e o isolamento provocados pela pandemia, que também levou à interrupção de programas de prevenção de violência e aconselhamento.

Segundo o Departamento de Transportes dos Estados Unidos, o número de mortes no trânsito de janeiro a setembro de 2021 foi o maior já registrado nos primeiros nove meses de um ano desde 2006.

O salto em relação ao mesmo período de 2020 foi de 12%, maior percentual de crescimento nos primeiros nove meses de um ano desde pelo menos 1975. Entre as causas citadas por especialistas em trânsito está um aumento no número de acidentes envolvendo motoristas embriagados.

Em seu estudo, White identificou aumento de 14% em mortes no trânsito relacionadas a álcool no período analisado. Mas o cientista desconfia que o número pode ser bem maior, já que muitas vezes o álcool não é listado como fator nesse tipo de morte.

Overdoses

Durante a pandemia também houve nos EUA uma explosão nas mortes por overdose de drogas, que de abril de 2020 a abril de 2021 ultrapassaram pela primeira vez a marca de 100 mil vítimas em um ano, aumento de 30% sobre os 12 meses anteriores.

Segundo o CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças, agência de pesquisa em saúde pública ligada ao Departamento de Saúde), a pandemia e as medidas adotadas para conter a covid-19 tiveram papel no crescimento. "O aumento nas mortes por overdose de drogas parece ter sido acelerado pela pandemia de covid-19", diz a agência.

White destaca que o álcool teve influência em cerca de uma a cada cinco mortes envolvendo overdoses de outras drogas.

O professor Sean Esteban McCabe, que é diretor do Centro para o Estudo de Drogas, Álcool, Fumo e Saúde da Universidade de Michigan e não participou do estudo, diz à BBC News Brasil que o salto nas mortes relacionadas ao álcool durante a pandemia é consistente com o aumento de overdoses de outras drogas.

"Infelizmente, para nós que trabalhamos com os indivíduos mais afetados por distúrbios no uso de substâncias, os resultados não surpreendem, e reforçam o que estamos vendo em nossas comunidades", afirma.

"A pandemia representou a tempestade perfeita, aumentando fatores de estresse e desmontando redes de apoio social, especialmente para aqueles em recuperação (da dependência)", salienta McCabe.

Futuro

Apesar de ter sido exacerbado durante a pandemia, o abuso de álcool já havia começado a aumentar nos anos anteriores nos Estados Unidos.

"Já estávamos escrevendo sobre esse grande crescimento em danos relacionados ao álcool e como isso parece ser parte de um aumento geral em problemas de saúde mental", diz White.

"Mesmo antes da pandemia, havia uma grande ênfase nas chamadas 'mortes de desespero', que envolvem suicídio, overdoses e doenças do fígado, e nas quais o álcool tem um papel importante", ressalta o cientista.

Dados preliminares dos primeiros seis meses de 2021 indicam que o número de mortes relacionadas ao álcool permaneceu alto no segundo ano da pandemia.

"Acho que os números para 2021 serão ainda mais preocupantes", afirma White, lembrando que, em 2020, os Estados Unidos enfrentaram a pandemia por apenas nove dos 12 meses, já que os casos de covid-19 e as medidas para conter a doença começaram a ganhar força somente a partir de março daquele ano.

"Precisamos de um esforço muito maior para ajudar uns aos outros a desenvolver estratégias saudáveis e sustentáveis de lidar com o estresse", afirma. Créditos: Gazeta do Povo.