Independência ou morte? O 7 de setembro por Rui Barbosa e Machado de Assis

07/09/2025
Para Rui Barbosa, o Dia da Independência era mito; para Machado de Assis, lenda que merecia ser evocada.(Imagem: Arte Migalhas)
Para Rui Barbosa, o Dia da Independência era mito; para Machado de Assis, lenda que merecia ser evocada.(Imagem: Arte Migalhas)

Por Revista Formosa

Há datas que sobrevivem ao calendário. Não se limitam à passagem dos anos, mas se tornam espécie de espelho da nação: nelas o país volta a olhar para si, a recordar feitos, a reelaborar memórias.

O 7 de setembro é uma dessas efemérides.

Dois séculos após o célebre episódio às margens do Ipiranga, o Brasil ainda debate se aquele instante foi um gesto heroico ou uma encenação burocrática; se se deve à lenda a grandeza da Independência, ou se a verdade histórica lhe rouba o brilho.

Entre os que desconstruíram a versão oficial e os que nela enxergaram a potência de um mito, dois nomes se destacam: Rui Barbosa e Machado de Assis.

Ambos refletiram sobre a data, mas por caminhos distintos: o primeiro, pela crítica implacável; o segundo, pela ironia que escolhe a lenda em detrimento da história nua e crua.

A crítica de Rui Barbosa

Para Rui, o brado às margens do Ipiranga não passou de encenação palaciana. Em suas palavras, "o divórcio entre a colônia americana e a metrópole ultramarina estava já consumado; e a interferência do príncipe regente não teve outro merecimento mais do que o de registrar um grande fato irremediável"

A emancipação, portanto, foi conquista popular, à qual D. Pedro I resistira, cedendo apenas quando forçado pelas circunstâncias.

O jurista enxergava na Independência não uma dádiva da coroa, mas resultado da pressão acumulada por revoltas, como a Inconfidência Mineira, a Revolução Pernambucana e outros movimentos que antecederam 1822.

Para ele, a celebração ufanista servia antes à exaltação imperial do que à memória da luta do povo brasileiro.

Veja a íntegra do texto em que Rui Barbosa critica Dom Pedro I.

A ironia de Machado de Assis

Em 1876, Machado de Assis dedicou uma de suas crônicas às festas do 7 de setembro.

O cronista começou observando que os aniversários também "envelhecem ou adoecem, até que se desvanecem ou perecem", mas que, naquele ano, a data parecia rejuvenescida.

O tom aparentemente leve, porém, era, como de costume, irônico.

Machado comentava um artigo publicado dias antes na Gazeta de Notícias por Joaquim Antônio Pinto Júnior.

O autor contestava a narrativa oficial, segundo a qual D. Pedro teria proclamado a Independência às margens do Ipiranga, em um brado histórico.

Para Pinto Júnior, "não houve nem grito nem Ipiranga": houve, sim, a decisão política do príncipe, mas pronunciada em outro lugar, longe do ribeiro que a tradição consagrou.

Pinto Jr. escreveu carta à Gazeta de Notícias a respeito do 7 de setembro.(Imagem: Reprodução/Hemeroteca Digital Brasileira)
Pinto Jr. escreveu carta à Gazeta de Notícias a respeito do 7 de setembro.(Imagem: Reprodução/Hemeroteca Digital Brasileira)

Diante da provocação, Machado reagiu.

Comparou o caso brasileiro aos debates sobre a história romana, cujos personagens, desbastados pela crítica moderna, talvez nunca tenham existido.

Mas, dizia, isso pouco importava: o valor de uma tradição está menos na exatidão dos fatos do que na força simbólica que carrega.

Foi nesse espírito que cunhou uma de suas frases mais célebres:

"Minha opinião é que a lenda é melhor do que a história autêntica. A lenda resumia todo o fato da independência nacional, ao passo que a versão exata o reduz a uma coisa vaga e anônima."

Assim, Machado reconhecia que o "grito do Ipiranga" podia nunca ter acontecido tal como os livros registravam.

Mas, para ele, a lenda condensava em uma imagem única todo o sentido da Independência, e por isso merecia sobreviver.

Crônica

Leia a íntegra da crônica de Machado de Assis:

[15 setembro]

ESTE ANO parece que remoçou o aniversário da Independência. Também os aniversários envelhecem ou adoecem, até que se desvanecem ou perecem. O dia 7 por ora está muito criança.

Houve realmente mais entusiasmo este ano. Uma sociedade nova veio festejara data memorável; e da emulação que houver entre as duas só teremos que lucrar todos nós.

Nós temos fibra patriótica; mas um estimulante de longe em longe não faz mal a ninguém. Há anos em que as províncias nos levam vantagem nesse particular; e eu creio que isso vem de haver por lá mais pureza de costumes ou não sei que outro motivo. Algum há de haver. Folgo de dizer que este ano não foi assim. 

As iluminações foram brilhantes, e quanto povo nas ruas, suponho que todos os dez ou doze milhões que nos dá a Repartição de Estatística estavam concentrados nos largos de S. Francisco e da Constituição e ruas adjacentes. Não morreu, nem pode morrer a lembrança do grito do Ipiranga.

II

Grito do Ipiranga? Isso era bom antes de um nobre amigo, que veio reclamar pela Gazeta de Notícias contra essa lenda de meio século.

Segundo o ilustrado paulista não houve nem grito nem Ipiranga.

Houve algumas palavras, entre elas a Independência ou Morte, -as quais todas foram proferidas em lugar diferente das margens do Ipiranga.

Pondera o meu amigo que não convém, a tão curta distância, desnaturar a verdade dos fatos.

Ninguém ignora a que estado reduziram a História Romana alguns autores alemães, cuja pena, semelhante a uma picareta, desbastou os inventos de dezoito séculos, não nos deixando mais que uma certa porção de sucessos exatos.

Vá feito! O tempo decorrido era longo e a tradição estava arraigada como uma idéia fixa.

Demais, que Numa Pompílio houvesse ou não existido é coisa que não altera sensivelmente a moderna civilização.

Certamente é belo que Lucrécia haja dado um exemplo de castidade às senhoras de todos os tempos; mas se os escavadores modernos me provarem que Lucrécia é uma ficção e Tarquínio uma hipótese, nem por isso deixa de haver castidade...e pretendentes.

Mas isso é história antiga.

O caso do Ipiranga data de ontem. Durante cinqüenta e quatro anos temos vindo a repetir uma coisa que o dito meu amigo declara não ter existido.

Houve resolução do Príncipe D. Pedro, independência e o mais; mas não foi positivamente um grito, nem ele se deu nas margens do célebre ribeiro.

Lá se vão as páginas dos historiadores; e isso é o menos.

Emendam-se as futuras edições. Mas os versos? Os versos emendam-se com muito menos facilidade.

Minha opinião é que a lenda é melhor do que a história autêntica. A lenda resumia todo o fato da independência nacional, ao passo que a versão exata o reduz a uma coisa vaga e anônima. Tenha paciência o meu ilustrado amigo. Eu prefiro o grito do Ipiranga; é mais sumário, mais bonito e mais genérico.

Dois olhares, um país

Entre a lucidez crítica de Rui e o apego simbólico de Machado, constrói-se a identidade nacional.

A Independência é, ao mesmo tempo, fato histórico e mito fundador, documento político e narrativa poética.

Ao nos aproximarmos do 7 de setembro de 2025, a reflexão ganha atualidade: seguimos a celebrar um gesto que talvez não tenha acontecido como reza a lenda, mas cuja força reside exatamente em sua permanência.

Afinal, entre a versão oficial e a memória popular, o Brasil continua a viver, e a se reinventar, na tensão entre a história e a lenda.

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